2007-08-25

"A TEORIA É A NOSSA PRÁTICA"

O terceiro capítulo do livro Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via que em seguida se reproduz aborda a questão do culto da personalidade, a sacralização de Álvaro Cunhal e a questão da "unidade de pensamento" no PCP (enquanto nele estive filiado, agora não sei o que lé se passa!...) para cuja preservação a direcção sempre recusou uma revista teórica com argumentos como o do título;

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CUNHAL NO OLIMPO

1) A sacralização de Álvaro Cunhal

Álvaro Cunhal com setenta e quatro anos de idade e ainda com cinco anos à sua frente como secretário-geral do partido, chegara ao Olimpo. Um Olimpo à medida do PCP, mas em todo o caso um Olimpo.
O Partido Comunista Português era em finais da década de 70, tendo em conta o país, um dos maiores e mais influentes partidos comunistas dos países capitalistas. Se houvesse que atribuir méritos por tais grandezas, ninguém hesitaria em atribui-los sobremaneira a Álvaro Cunhal. Sem esquecer os outros quadros revolucionários e as lutas notáveis que protagonizaram que lamentavelmente, ninguém vai conhecer porque não foram passadas a escrito salvo um número relativamente pequeno de autobiografias ou relatos, vivos e interessantes, de lutas contra a ditadura da autoria dos próprios protagonistas. E é pena. Para os Portugueses que ficam sem conhecer uma parte de si. E em muitos casos uma parte vibrante de coragem e abnegação.

Figura carismática e amada no seu partido pelo heroísmo patenteado nas prisões fascistas e na clandestinidade, “o Álvaro” era venerado pela sua coragem, inteligência, cultura. E dedicação total à luta pelo comunismo. A sua acção e as suas características pessoais tornaram-no um dos mais prestigiados dirigentes internacionais no universo comunista e em particular na União Soviética.
A luta sem desfalecimento durante o meio século de ditadura em condições de clandestinidade e forte repressão e depois o papel central desempenhado pelo PCP na revolução do 25 de Abril trouxeram-lhe e ao seu líder grande influência entre uma significativa parte dos Portugueses. Se grande era a força do ditador Salazar, à sua altura levantava-se Cunhal! Muitos assim pensavam.

O prestígio e a adoração de Cunhal não deixavam de crescer num partido onde, a iliteracia, o atraso cultural, a fé que não o estudo, caracterizava uma grande parte dos militantes apesar de ter nas suas fileiras, ou como simpatizantes, grande parte da elite intelectual do país.
A comparação com a classe operária da França, Itália, Alemanha e outros países europeus era frequentemente usada por Álvaro Cunhal, na permanente formação interna de quadros que constituíam as suas conversas, para sublinhar uma pretendida superioridade revolucionária da classe operária portuguesa patente nas frequentes manifestações, greves e agitações sociais. E que explicação haveria para tal milagre no país que incessantemente repetíamos ser o mais atrasado da Europa? Pois apesar de a classe operária portuguesa ser das últimas a formar-se na Europa Ocidental devido ao atraso industrial do país, ter menos tradições de luta revolucionária e estar mais marcada pela sua chegada recente do campo, tal prodígio, teria de se concluir, resultava do persistente trabalho de esclarecimento do PCP junto da massa dos trabalhadores! Intimamente era lógico concluir que em elevado grau isso era mais um mérito a atribuir a Álvaro Cunhal.

O secretário-geral em cada reunião do comité central e sempre que a ocasião o proporcionava, explicava como era gratificante ver reconhecido na União Soviética e em todo o movimento comunista internacional “o grande prestígio do nosso partido”. Cada participação em acontecimento importante lá fora, no mundo comunista, de acordo com a informação ao comité central, revelava o alto valor e estima em que era tida a participação do PCP. Como quem chefiava as delegações portuguesas para acontecimentos de maior relevância era quase sempre Cunhal concluíamos a quem se devia atribuir o mérito. Só a firme oposição de Cunhal ao culto da personalidade impedia que o próprio colocasse tais feitos no seu curriculum e insistisse em os atribuir ao “nosso glorioso colectivo”.

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2) Teorias? bastavam as de Cunhal

Apesar de a condição operária constituir a regra de oiro na selecção e promoção de quadros do PCP e ser defendida com esforçado empenho pelo secretário-geral, não foi possível encontrar na classe operária portuguesa nem no partido, nas últimas dezenas de anos, um único quadro operário (ou não operário!) que se aproximasse da estatura do intelectual Álvaro Cunhal. Ou que lhe pudesse fazer sombra! Não é estranho? Não, não é estranho. É uma consequência do “pensamento único”, concepção da unidade do partido tão acarinhada no PCP e uma consequência da sacralização de Cunhal. Mesmo à sua revelia. Tais quadros teriam de respeitar, no essencial, as ideias de Cunhal, mesmo delas discordando ou confrontá-lo na sua liderança. O terreno estava minado e ninguém se dispôs a trilhar tão incerto caminho ou conseguiu evitar as minas.
Este vazio que se foi consolidando desde Janeiro de 1961, altura em que Cunhal fugiu do Forte de Peniche e regressou à direcção do partido, tinha pelo menos duas consequências redentoras, libertaria o partido durante décadas do vício “próprio dos partidos burgueses” que é a competição “fratricida” pelo poder e garantiria a inamovibilidade de Cunhal na liderança do partido.

O modelo do PCP era e continua a ser o do partido estalinista. Modelo do partido bolchevique que após a morte de Lenine viu agravada a liberdade de expressão, acabou com a possibilidade de organização de tendências, proibiu a circulação na imprensa partidária e na organização do debate livre de teses opostas às da direcção. O modelo de partido consagrado com a chefia de Estaline acabou por ser o modelo que, na prática, serviu de exemplo aos comunistas de todo o mundo, a partir de Moscovo. Em Portugal foi esse o modelo seguido, sem o culto da personalidade, sem as perversões e os crimes de Estaline, sem a paranóia persecutória do “pai dos povos” no fim da sua vida, sem a degenerescência proporcionada pelo poder mas também sem a cultura do estímulo ao debate livre, à pluralidade de opiniões, ao contraditório, à abertura de espaço para posições contrárias relativamente a questões essenciais. Porque relativamente a questões sectoriais a questões tácticas, orientações que não pusessem em causa as orientações centrais, não bulissem com o poder, aí havia toda a liberdade. Naturalmente que estes limites do PCP não eram, para o militante cheio de fé, muito evidentes nem, frequentemente, percepcionados pelo militante comum. Isso só se tornou claro para muitos quando as divergências de fundo vieram ao de cima. A uma escala de massas, como a partir do fim dos anos oitenta, ou individualmente, noutras alturas.

Curioso é assinalar que algum tempo depois da revolução de 25 de Abril foi muito debatido, pelo menos nos corredores da sede do comité central ou em pequenos grupos, e muito menos de forma regular nas organizações do partido ou no comité central, a questão do debate teórico no partido e em particular a natureza a dar ao boletim O Militante. Havia quem defendesse que este deveria dar lugar a uma revista de debate teórico ou das questões ideológicas mas tais opiniões tiveram a oposição de Cunhal e outros dirigentes que defenderam que a revista devia continuar a ser um boletim de organização. A direcção de modo nenhum poderia tolerar a ideia da “revista teórica”; isso redundaria no debate de questões essenciais de orientação e na pluralidade de ideias a circularem pela organização com a chancela da legalidade. Seria transformar o partido, “exército disciplinado” com um “pensamento único” no despautério de um “clube de discussão”. Para teorias bastavam as que Cunhal fosse escrevendo nos seus discursos ou documentos oficiais. Álvaro Cunhal chegou a sustentar, em conversas informais, na Soeiro Pereira Gomes, que em Portugal, com o PCP na vanguarda por transformações económicas e sociais profundas, “no nosso partido a teoria é a nossa prática”.
Havia duas razões para tal recusa de uma revista teórica. A primeira e fundamental era a já referida, evitar o aparecimento e o debate no partido de “teorias” que se pudessem chocar com as da direcção ou de Cunhal. E a segunda porque Álvaro Cunhal não tinha o pendor especulativo e teorizador característico de alguns expoentes do movimento comunista.


Quando a decadência do PCP começa a acentuar-se nos anos oitenta e se tornava indispensável determinar as suas causas e mudar a política, a exigência de pensamento único em torno do pensamento do líder está de tal modo sedimentada, é um valor de tal modo sagrado que tocar nele é trair e colocar-se ao lado do inimigo.
Quando o definhamento do PCP parece tornar-se irreversível para o fim dos anos oitenta e é necessário questionar o secretário-geral ou confrontá-lo com a realidade que em definitivo recusa aceitar, Álvaro Cunhal já não está acessível. Paira nas alturas muito acima do erro humano. A sua gerência do PCP já não é terrena. É do domínio do sagrado. No PCP ascendeu à condição de intocável. Apesar de andar por ali na sede, no meio de nós, de o tratarmos por tu, de almoçar e ir tomar café connosco, usar jeans e camisas de meia manga.