2007-05-09

EXPRESSO actual - 2007-05-05 (1)

O jornalista José Pedro Castanheira fez no suplemento Actual do Expresso uma apresentação do livro Álvaro Cunhal... que consta de 4 partes. A 1ª inclui um extracto do livro e é o objecto deste post. Uma 2ª que é uma entrevista ao autor de que se apresentam extractos no post seguinte, uma 3ª parte constituída por frases retiradas do livro e uma 4ª parte com uma apreciação sua do livro denominada SEGREDOS e que se transcreve noutro post mais abaixo.



José Pedro Castanheira:

Álvaro Cunhal e a Dissidência da Terceira Via» é o título do livro de Raimundo Narciso, um dos mais destacados dissidentes comunistas, expulso do PCP após 25 anos de militância. Editado pela Âmbar, vai para as livrarias na próxima semana.

Nas vésperas do congresso da ruptura, realizado em Dezembro de 1988, Raimundo Narciso pediu um encontro a sós com Álvaro Cunhal, na sede onde ambos trabalhavam. Conheciam-se há uns bons 20 anos. Tinham estado juntos, ainda durante a ditadura, em Paris e Moscovo. Durante o PREC, integraram um organismo criado especialmente para acompanhar as vicissitudes da Revolução. Desde o 25 de Abril, funcionário e dirigente do partido, Narciso contactava diariamente com o secretário-geral. Gorbatchov e a «perestroika», porém, tinham-nos colocado em campos opostos. Dias antes, Cunhal chamara-o para uma conversa particular, que se revelara uma derradeira tentativa para o reconduzir ao redil. Sem sucesso. Nos dias seguintes, um membro da segurança, a mando de Octávio Pato, seguiu num Mini vermelho todos os passos de Raimundo Narciso. Este fez questão de esclarecer a insuportável ignomínia com o próprio líder. Segue-se o capítulo sobre a última reunião com Cunhal:

A última reunião com Álvaro Cunhal

Afinal a conversa que tivera dias antes com Cunhal não seria a última. O caso do Mini obrigava a uma última conversa. Essa, sim, seria a última. Agora a táctica e a logística da reunião ficava à minha responsabilidade.
Esperei pela ocasião apropriada. Não quis, depois do incidente da vigilância, ir a correr ao sexto andar pedir explicações ou fazer uma cena. Seria despropositado. E até sinal de pouca maturidade. Prova de ignorância do que é um verdadeiro partido comunista. Que raio andara então a fazer tantos anos no PCP que não percebia ser natural o exercício atento da espionagem perante o inimigo, mormente se interno? Em período de tantas perplexidades, quando a União Soviética, último bastião do comunismo, dele parece desertar, num momento em que o PCP sentia à sua volta quase toda a comunicação social contra si, em tais circunstâncias cada um de nós é um potencial suspeito e cada um de nós deve sentir-se orgulhoso por não estar fora da vigilância revolucionária.
Foi assim que um dia no regresso ao trabalho de uma daquelas voltinhas em redor da Soeiro Pereira Gomes, a seguir ao almoço, a poucos passos da entrada, sem me denunciar me abeirei, por trás, de uma das minhas amigas de muitos anos, desde os tempos da Universidade e do movimento associativo dos anos 60, agora membro do comité central e a assustei. Segredei-lhe em tom conspirativo, vinha aqui atrás de ti a vigiar-te e tu não davas por nada!
Ainda esperei que desse à minha observação a importância de um piropo e respondesse que sendo tantos os seus admiradores não lhe sobejavam afectos para mim. Mas o ambiente andava tão crispado que não lhe ocorreu dizer nada de melhor que “nos tempos que correm é um dever revolucionário vigiarmo-nos uns aos outros.”.
Tal reacção escrita não diz nada. Eu, nas antípodas da sua posição sobre o assunto, poderia ter dito exactamente o mesmo. Mas como se sabe o tom é tudo. E nela o tom emprestava à frase toda a seriedade, dedicação e disciplina que deve ser timbre de um verdadeiro aparatchic.

Pedir uma reunião a Álvaro Cunhal? Podia ser uma forma. Mas excessiva. Fiz como ele fizera comigo, aguardaria que uma das nossas frequentes idas ao bar da Soeiro, nos fizesse encontrar por acaso.
“O Álvaro” vinha com o seu passo firme, não diria apressado mas rápido quanto baste para quem o tempo escasseia. Do balcão dirigi-me para ele e perguntei-lhe, camarada estás livre? Sim, o que é? Queria conversar contigo. Se estiveres de acordo podemos ir aqui a uma das salas de baixo. Fomos. Pareceu-me que Cunhal não adivinhava o que me motivava. Pensaria que teria meditado nas “preocupações do nosso partido”, que me transmitira na conversa anterior, e arrepiava caminho? O que pensava não sei e se há pessoa que sabe apresentar um semblante onde não se vislumbra nada do que lhe vai na alma é ele.
– Camarada ocorreu há dias um acontecimento grave e não queria que dele não tivesses conhecimento pleno.
Fiz uma breve pausa a dar-lhe a oportunidade para uma qualquer reacção. Não disse nada como esperava. Olhava-me fixamente sem a mais ligeira reacção. Por isso prossegui.
– Há dias fui seguido e espionado por um funcionário do partido num carro que só sai daqui às tuas ordens ou do Octávio Pato – Cunhal começou a carregar o sobrecenho naquele jeito tão seu natural nas situações que lhe desagradam. – Não sei se foi às tuas ordens ou sequer se tens conhecimento do caso. Não estou aqui para exigir que me respondas. Estou aqui para que uma coisa destas não passe sem que tu tenhas dela pleno conhecimento e procedas como te aprouver. Trata-se de um membro do comité central do PCP – continuei, dando a cada palavra a relevância que merece num partido como aquele, em que, em teoria, ser-se membro do comité central é uma honra e uma responsabilidade suprema – é seguido e espionado por um serviço do próprio partido. Acho que é um acontecimento que não podia, não devia, ter acontecido. Que consequências isto não teria se chegasse à comunicação social?
O rosto de Cunhal foi-se tornando cada vez mais carregado, as suas frondosas sobrancelhas quase se uniam e o ar crispado do facies antecipava a explosão que não tardou.
– Camarada – o “camarada” foi mais gritado que dito, como era natural em tal situação – camarada, num momento em que o nosso partido é alvo de uma campanha insidiosa, um ataque brutal dos seus inimigos, quando enfrentamos uma luta sem quartel, numa situação tão perigosa como a que estamos a viver, num momento em que as nossas organizações mais reservadas ou vitais para o nosso partido estão a ser postas em causa – mais de duzentos camaradas! -, Tu conheces e tu achas que o partido não deve fazer tudo o que for necessário para se defender?
Nunca assistira a uma cara tão expressiva do secretário-geral. Cunhal falava com cara fechada, os olhos semi-cerrados, voz cortante e uma expressão convicta, de revolucionário e chefe. Esforcei-me por manter um ar impassível, uma cara neutra como a dum chinês. Quando ele terminou, em justa cólera, fiz menção de me levantar – afinal fora eu que pedira a reunião – e terminei dizendo que queria ter a certeza de que uma situação tão intolerável na actividade do partido não passasse sem o seu conhecimento.
A reunião terminou ali. Quem nos visse sair não adivinharia pelas nossas caras que a conversa não tivesse sido mais do que uma reunião de trabalho. Cunhal comportou-se como o general- comandante que era. Não esclareceu nada sobre a autoria da espionagem, como era de esperar e deu-lhe, sem se comprometer, total cobertura.
Cá fora despedimo-nos com um anódino até logo camarada. Depois e até ao seu falecimento dezassete anos depois não surgiu oportunidade, nem necessidade de voltarmos a conversar. Nos meses seguintes até me demitir de funcionário em Março de 1989 cruzámo-nos muitas vezes e sempre nos cumprimentámos cordialmente sem a menor quebra de urbanidade. Como fazemos a um vizinho novo no prédio e que ainda não sabemos quem é.

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