2007-05-13

O Sol entrevista o autor

RAIMUNDO Narciso tornou-se militante comunista nos tempos em que frequentava o Instituto Superior Técnico. Em 1964, abandonou os Estudos, a família e os amigos e passou à clandestinidade como funcionário do PCP, situação que só se alterou com o 25 de Abril.
Durante os anos da dita dura foi escolhido para criar e dirigir a Acção Revolucionária Armada (ARA), organização responsável por vários atentados contra símbolos do Estado Novo — nomeadamente, a destruição, em 197l, de 28 aviões e helicópteros estacionados na base aérea de Tancos.
Membro do Comité Central do PCP durante vários mos, foi expulso juntamente com Barros Moura e Mário Lino, em 1991, por discordâncias profundas com a orientação do partido. Para trás ficavam reuniões tidas por conspirativas em casa de Joaquim Pina Moura, a que se juntavam António Graça, Vítor Neto, José Luís Judas, Barros Moura e Fernando Castro.
Raimundo Narciso nasceu em Torres Vedras em 1938, é casado, tem dois filhos e dois netos. Depois da expulsão do PCP, foi fundador da Plataforma de Esquerda e eleito deputado nas listas do PS, em 1995.
Autor do livro ARA, publicado em 2000, lança na próxima semana uma segunda obra com o título Álvaro Cunhal e a dissidência da terceira via — uma viagem guiada ao interior do Comité Central entre Julho de 1987 e Dezembro de 1988, período que corresponde à preparação do 12.° Congresso do PCP e durante o qual ganha forma a maior cisão no PCP no pós 25 de Abril.

EX-DIRIGENTE DO PCP EXPULSO EM 1991 RELATA EM LIVRO O PROCESSO DE CISÃO

‘Nem mesmo Álvaro Cunhal tinha já uma visão idílica dos países comunistas’.

No seu livro, descreve uma reunião com Álvaro Cunhal a pedido deste para o tentar afastar do grupo dos críticos. Não sentiu nesse momento vontade de reconsiderar?
Todas as grandes decisões da minha vida política foram tomadas de forma muito pensada, nomeadamente aquando da minha passagem à clandestinidade. Álvaro Cunhal não me fez um pedido explícito para reconsiderar mas, na realidade, era esse o objectivo. Essa reunião veio na sequência de várias outras com Blanqui Teixeira e Octávio Pato, todas para, como se dizia no partido «ajudar o camarada». A reunião com Cunhal foi a última tentativa para me reencaminhar.
Álvaro Cunhal não teve uma conversa dessas com todos os críticos. Signifca que tinha um especial apreço por si?
Ele fez esse contacto com pelo menos três pessoas: comigo, com o António Graça e com o Vítor Neto. Éramos os três membros do Comité Central. Havia factores com algum peso no universo de referências do PCP Eu era membro do Comité Central há muitos anos, tinha vivido 10 anos na clandestinidade e havia um aspecto que, na circunstância, dava um certo pedigree: o facto de ter pertencido à ARA (Acção Revolucionária Armada) antes do 25 de Abril e ter sido o elemento que mais fez pelo lançamento dessa organização.
Sendo conhecedor dos métodos utilizados, há uma certa candura na sua surpresa quando descobre que está sob vigilância...
Sim, se pensarmos noutras vigilâncias que se tornaram públicas e que foram comentadas no próprio Comité Central, nomeadamente em relação a Zita Seabra. Digamos que a surpresa foi mais emocional do que racional
Implicitamente, Álvaro Cunhal assumiu que estavam a segui-lo em nome da defesa do partido?
Não confirmou, mas também não negou nada nem mostrou surpresa, como se se tratasse de um procedimento natural.
Porque levou tanto tempo até perder o encanto em relação ao PCP?
A ruptura só chegou no momento em que houve uma divergência séria. Toda a retórica sobre o centralismo-democrático é excelente quando temos todos a mesma opinião, mas não permite divergências.
A perda de influência do PCP na sociedade portuguesa no final dos anos 80, a par do fim da URSS e da Perestroika de Gorbatchov foram determinantes para a cisão em que participou, a maior desde o 25 de Abril.
Privilegio as razões de carácter interno. Todos nós estávamos próximos ou fazíamos parte dos órgãos de decisão do PCP e constatávamos uma evolução cada vez mais desadequada com a realidade, que não acompanhava as grandes mudanças da sociedade portuguesa.
A queda do comunismo fez ruir o ideal da sociedade socialista sem classes?
Nós já não tínhamos essa visão idílica dos países comunistas. Nem mesmo Álvaro Cunhal, só que ele não o dizia.
«Sem União Soviética e sem Álvaro Cunhal, o PCP de Jerónimo de Sousa é um comunismo de sociedade recreativa». Não está a ser injusto com o actual secretário-geral do PCP?
A frase foi retirada de um contexto onde assume uma importância muito relativa. Jerónimo de Sousa é um líder que tem grande empatia com os trabalhadores e é um popular ao contrário de Cunha!, que era um príncipe da Renascença. Jerónimo de Sousa é um homem da fábrica, da sociedade recreativa, do bailarico. Creio que o actual líder comunista trouxe de novo ao partido uma camada da classe trabalhadora que estava desiludida com a situação política e que viu agora à frente do partido um operário muito perto deles.
Jerónimo de Sousa é, de facto eleitoralmente mais atractivo.
Mas, com o fim da URSS, com o desaparecimento de Álvaro Cunha], que era um estratego e um teórico, deixou de haver no PCP um horizonte compatível com a actual realidade. Continuar a falar no comunismo como se falava antes, na sociedade socialista como se visionava, no marxismo-leninismo como cartilha que se usou durante tanto tempo, no centralismo democrático sem um upgrade muito grande é, de facto, um comunismo de sociedade recreativa.

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