2007-05-15

O Gabinete de Crise

4º título do 1º capítulo. Páginas 26 a 28.


Gabinete de Crise foi a expressão que num momento de inspiração um dos membros da segurança da sede do comité central se lembrou de aplicar ao grupinho que diariamente se juntava na sala de convívio, da Soeiro Pereira Gomes, depois de almoço, com cara de caso e conversa solta a discutir o futuro do PCP. Estávamos em 1987. Hoje ninguém se lembra disso a não ser um ou outro dos raros elementos da segurança que ainda se não foi embora, perdida a fé, a esperança e as razões que justificavam o espírito de tanto sacrifício.
O camarada de serviço à porta de vidro que isola o interior da sede do comité central da recepção e sala de convívio veio render o que terminara o seu quarto de sentinela.
– Dá cá as chaves. Passa lá por cima, o Tó Almeida quer falar contigo.
– Queres ficar com o Tio Patinhas ou levo a revista para o quarto andar? Olha, está reunido outra vez o gabinete de crise... Aproveita e vê as caras preocupadas que eles fazem!
Vítor Neto, Fernando Castro, Pina Moura, António Graça, Luís Sá, Vítor Dias o autor destas linhas, e mais um ou outro.
Quem conhece a sede do comité central lembra-se daqueles sofás vermelhos em U, encostados à parede e com divisórias de madeira almofadada para recosto. As chávenas na mesa de vidro fumado ao centro completavam o cenário. Dali aos cafés parisienses do Quartier Latin da nossa juventude era só um pulinho de imaginação.
Saboreávamos o café dado ao balcão pelo Ruben de Carvalho que hoje estava de serviço ao bar. E avaliávamos a perestroika. Sopesávamos as novidades trazidas pelo Vítor Neto, do comunismo italiano, no índex desde que o eurocomunismo de Berlinguer tinha sido excomungado no PCP. O Vítor está casado com a Simoneta uma intelectual italiana, isso e o seu passado de relações com o PCI em Itália, durante o exílio, oferece-lhe frequentes e úteis contactos com o partido de António Gramsci. Bebemos o café e as novidades...
– Vão uns bons pares de anos à nossa frente. Cunhal é que acha que não.
Discutíamos as avaliações da direcção relativamente ao período pré-eleitoral que já se vivia. Ainda faltavam uns meses para as eleições legislativas de 87 e a tendência no sexto andar era o costume, animar as hostes com a ficção da grande perda de apoio popular de Cavaco Silva e a sua derrota inevitável em 19 de Julho próximo. Parecia-nos o contrário mas a direcção não estava para fazer cedências à realidade. Nem todos, lá em cima, pensavam o mesmo certamente. Mas como vem tudo a uma só voz, em formato centralismo democrático não é fácil conhecer as nuances.
– Paredes de vidro!
– Vidro espelhado!
Os camaradas da segurança, à porta de vidro, em quartos de sentinela de duas horas vazias observavam-nos com a atenção de quem necessita de matar o tempo e olhando-nos de longe o rosto e os gestos não sabíamos que nos liam a alma.
– Gabinete de Crise! Aí está. Gabinete de Crise! O que é que achas?


O Centro de Trabalho da Soeiro Pereira Gomes como todas as sedes do PCP usam o pseudónimo de Centros de Trabalho. Não foi só por apego a regras da clandestinidade foi também uma consequência do processo ambíguo com que a revolução começou.
Os capitães que souberam organizar o levantamento militar de nNorte a sSul do país e levar de vencida o aparelho repressivo do Estado Novo acharam-se pequenos para a alta política e foram chamar o general Spínola para a governar. O general que conhecera Estalinegrado do lado dos nazis, andara de braço dado com a PIDE na guerra colonial, estava tão temeroso dos seus antigos patrões como da democracia e achava que o melhor mesmo era aproveitar a PIDE ainda que reciclada e inaugurar a democracia sim, mas sem partido comunista a estorvar. O PCP decidiu não pedir licença ao general para sair da clandestinidade, calçou as luvas, subiu ao ringue para o combate há décadas preparado e nos intervalos das manifestações e levantamentos populares abriu sedes por todo o país. Sedes sim, mas disfarçadas com a designação de centros de trabalho, fórmula facilmente sustentável perante o faiscante monóculo do general com a máxima de que “a nossa política era o trabalho”.
Portanto a sede do comité central na Soeiro Pereira Gomes tinha na certidão de nascimento registado, não sede mas centro de trabalho. E a rua, se assim se lhe podia chamar, tinha só...

1 comentário:

sergio disse...

Sem querer menosprezar ninguém apenas refiro que a ideia do PCI "Vão uns bons pares de anos à nossa frente" é manifestamente irreal.o PCI dissolveu-se na sua Terceira Via e do PDS que se dissolveu agora e que se vai fundir com os herdeiros da Democracia Cristão de centro direita e da política mafiosa.